Planeta ou Terra
Não é fácil viver num lugar onde aloquam-se as pessoas em extremos.

A Idade da Razão já passou de suas 510 primaveras e nós, leigos de si mesmos, estamos ainda na mesma indagação perene da razão das divisões. O mundo girou algumas vezes e o Autralopitekus virou Sapiens, perdeu alguns pêlos no corpo e ganhou o atributo da linguagem. E de lá pra cá só falou curcubitáceas. Lá vem a gente novamente falar disto. E porque não acaba com o assunto? Respondo com ar de sabedoria de quem fala curcubitáceas muito bem: porque o próprio é remasterizado o tempo todo. O homem daquela época cutucou com uma vara na parede da caverna, e o outro homem ao seu lado se exaltou com o símbolo rudimentar criado alí. Daí então, partiu-se a história da História - em "Pré-História" e "História", e eventualmente, vem-se partindo tudo, segregando o desenvolvimento dos homens. Pensamos, então, quantas histórias o mundo tem? O mundo é só uma bola - meia murcha, vamos combinar - e uma gama de cientistas políticos desocupados estão lá, na frente dos dados, procurando algum motivo para dividi-lo. Fizeram na Idade Média - aliás, Cruzadas eram 'pra cruzar' algo que se tinha dividido e que estava lá em Jerusalém. Chega na Idade Moderna, um tronco de teoria entra na cabeça do homem europeu. O Renascimento ressucita Grécia e Roma, e com elas ressucitam também as divisões da extensão da cultura: o que é romano prum lado, o que é grego pro outro. Dividiu-se o Católico do protestante, e enquanto um queimava o outro na Inglaterra, se fazia a divisão do Mercantilismo e Liberalismo, do Liberal e do Conservador, do Moderado e do Radical, do escravista e do não escravista, enquanto 80% do mundo não catedrádico estava feliz tendo seus indivíduos cagando na mesma latinha. Na perspectiva da Idade Contemporânea de unir os povos do mundo, pá!, interesses não o deixou, o mundo segrega novamente: ou é Democracia ou não é. Ou é Neocolônia ou é Neometrópole. E a DIT coloca mais um barco entre as águas: ou é produtor ou é comprador. Opa! Eu falei em tentativa de união alí atrás? Quem tentou isto morreu e entrou presta História dividida como difunto lutador - mártir. J.P. Proudhon, em 1930 fala que "a propriedade é um roubo", fundando alí o Mutualismo - que pra sua raiva chamariam posteriormente de Anarquismo -, pregando a união entre os povos. A nata francesa pregou o chumbo nele. E o barbudo do Marx, petulantemente, divide mais uma vez a nossa insana vivência no mundo: Proletário e Dono dos meios de produção. Quando vieram as Guerras Mundiais, é claro que o mundo não se une. Aliás não tem como guerrear contra si mesmo: ou era da Tríplice Aliança ou da Tríplice entente, do Eixo ou dos Aliados. E o degelo da Guerra Fria no mundo lá vem em fincar uma tal de "Cortina de Ferro" na Europa e uma linha imaginária no planeta, criando pólos nesta coucha de retalhos: Socialista ou Capitalista. Ou o mundo via HollyWood ou não via programa nenhum. Assistindo ao noticiário hoje - fui parar no lado onde tem Hollywood, por pressão -, um analista político de aspecto viril e exato - sim, criaram mais uma profissão para nos desviar a atenção prum homem de paletó - e este dizia, alizando a gravata: "...e a divisão do mundo em países pobre e ricos...", tzum! Troquei de canal. Neste outro, Bóris argumentava sobre a " ..reunião do G -15, que acontecerá.." tzum! Novamente subi o canal. Fui parar num programa de auditório, onde uma mulher loira com uma caneta numa mão e microfone na outra - estereótipo de apresentadora sabixona - completava uma frase, exasperadamente tendenciosa: "...guerra dos sexos". E eu grilei , deslingando o astuto objeto. Fui parar no banheiro, onde alí praticaria o ócio universal da higiene e da isonomia. Porque uma coisa é certa: o que une os homens desse planeta, os inserindo sutilmente na condição de terráquios, é a privada! (Excluam a Sandy, claro.)



Marcos Carneiro
Uma dose de espera


Eram cinco e meia da manhã,



...e ela desperta como gato em dia de faxina: 'Bom dia monotonia'. Sim, ela mesma. O parente mais presente da família, e o que mais acolhe sem abraçar, sem dialogar. Chovia lá fora, e chovia dentro de sua consciência. O barulho da água na calha enaltecia a impaciência da branca menina, e como uma ópera misantropa que estuprava seus ouvidos, enquanto suas mãos macias tentavam intervir. O buraco na velha calha de madeira, fazia desta cair no pequeno cômodo escuro, um mal educado pingar perene, como os segundos do relógio. Um, dois, três, mil, a moça contava, mas relutava em perder-se em números, e horas voavam. Em vão, outro barulho emergia de dentro de si, uma voz que a chamava reiteradamente, 'venha, renda-se'. Ao seu lado, o criado mudo segurava as garrafas, duas quebradas e uma no chão. Ao lado destas, uma faca suja de vinho, líquido que desceu, junto à saliva nas gargantas de dois cúmplices do crime que virá a acontecer. A bola branca que encobrira todo o leito do quarto já se fantasiava de amarelo-pardo há alguns minutos, banhando, com seu espectro fantasioso de cores múltiplas, o tenro lençol que antes era dinâmico nos tempos da dupla silenciosa de macho e fêmea. Hoje, em capela murmurante, o lençol é uma estufa, onde entra a moça branca, o tempo, e as lembranças do dia, e sai um inseto após a ecdise fantástica da madrugada. Ela pensa ' a madrugada é a tela insalobra que revela aquilo que o dia escondeu', e escondeu muito, o tudo, o nada, o quase. Então vem a espera, a ovelha negra da família do tempo. A adolescente parada na inércia da austeridade do pai normalista. E a espera sim, é angustiante, naturalmente. Não fomos feitos pra esperar, pois esperar é parar encima de uma esteira, esquivando-se de ir em frente e dando passadas para retaguarda. Ela não é consumida, ela te consome. Ela te come, roe por dentro, deixando por lá a lacuna sedenta de ser preenchida por outra espera. No estampido oco de uma lembrança opaca, a moça remoe dentro de si a lembrança do passado entre sorrisos e toques, gestos e expectativas de futuro. Promessas e a pressa, que entre os goles de incerteza, se erguiam os alicerces da futura saudade. Saudade, este ciúme que se tem do passado interminável. Os olhos verdes da moça, agora fitavam o telefone. O mesmo que antes tocava como música clássica em tempos de felicidade. A chuva pára por um momento, como se esperasse algo acontecer, algum zumbido soar em algum lugar, como se esperasse uma passagem inédita para voltar á molhar o pasto. Ela olha para o teto, estirando-se por completo na cama, a mesma que na noite passada dois corpos de entrelaçavam, formando apenas um, um que entendia a si mesmo e seus anseios de moça rebelde, desbravadora de dois mundos. Imagina o teto como uma membrana celular, e ela, nadando naquele ectoplasma que lhe prendia com força, gritava 'este é meu lugar!' E gritava mais alto agora, e mais alto na segunda vez, agora apenas sussurrava, murmurava, chegou apenas a gemer os quatro vocábulos ao som dos pingos da última leva de água presa á calha: plic, plic, plic, plic,... triiiiiiim! O telefone toca. Nesse momento, a moça branca acorda de si mesma, e calmamente retira-se de dentro da célula que se imaginava estar em seu interior. O epitélio caucasiano se dobra petulantemente por toda a extensão de seu corpo. Fica atenta a penugem de um pescoço que antes era só calmaria entre beijos e unhas, unhas que tocavam furavam, a rasgavam, burlando com o próprio concentimento da alma feminina. Novamente grita o telefone com seu gemido estridente, lhe pedindo para ser violado, lhe pedindo para sentir seu plástico sintético que escondia algo do outro lado, lhe pedindo para acabar agora com a espera. Agora! E as mãos da moça iam na cabeça, nos lábios, nos seios, no lençol, na camisola entre marcas vermelhas da noite passada, da noite alcólica que lhe mostrou a certeza que sempre há de vir: 'tudo há de se acabar um dia'. E suas mãos, agora mais rápidas, e violentas, retratavam arduamente, o doce espelhar da máquina do instinto animal, e elas se batiam, não se reconheciam, na madeira, no cetim, nos dentes agora a cravar o travesseiro onde repousou as carícias do belo moço. Toca mais uma vez, o escárnio objeto ao seu lado, e junto á ela, toca a certeza de que não há mais para onde ir, 'não há', pensa alto a moça. Antes que tocasse a terceira chamada, a mão esquerda toma a decisão por um sutil golpe de misericórdia à si mesma, a mão que agora leva o telefone ao seu colo sujo de vinho tinto, a mão que acolhe o objeto como o seu mais novo amor, como o teu primeiro e ultimo amor, e esta agora escora a massa plástica engordurada no pescoço, e de longe se ouve um voz que lhe diz em alto tom: 'sou eu'. Morde o objeto, como se quizesse se alimentar de tal situação, ou da barítona voz que se emerge de tal invenção humana. A bola que se fazia branca, é todo um corpo vermelho redondo que se estende pela varanda, e atingindo as arestas de todo o quarto, sem deixar sombras e penumbras, ilumina o gume litigioso do punhal encima do creado. Os olhos miram o objeto que reluz com uma sinceridade misturada á sede de toque, que as mãos macias da moça mata ao pegá-lo com vontade, enquanto o telefone é erguido aos ouvidos. O vento, doravante, sem licenças, entra pela porta, ironicamente lhe trazendo todo o ar que esbrajadamente entra por toda a sua boca, preenchedo seu pulmão por completo, enquanto a faca massagea o busto que antes era tocado por lábios alheios, mas não alheios à sua vontade. A ponta do objeto, maliciosa que é, faz o mucocilial se abrir como o mar se abre ao rio, entrando com força, mas com sutileza. A voz que fala ao fundo perde o valor que tinha, e em imensa dor da pressão que faz a ponta afiada na angústia da moça, faz cair o objeto que à pouco fitava e amava com gosto. A outra mão, deitada no colchão macio, se estende e se junta à outra, onde no cabo de madeira se faz ir ao pescoço, correndo salutante entre as dobras suadas, fruto de sua pior estação do ano. Passa, portanto, a cantar com gemido, a música de uma alma saindo da carcaça onde habitou desde a fulcro de infância, de moça pura e destemida. O corpo treme, a os pés balançam, dobram, levantam, páram. O gemido se torna um grito agudo, sem traquéia, linguagem para o mundo ouvir e se deliciar. E o grito vira voz, que vira vibrado, que se ergue e responde á quem quer ouvir: 'eu me rendo'. Ao gosto de vento e sangue, suas mãos cravam o objeto no pescoço com vontade, e seus olhos se abrem, mas os da mente se fecham, na lembrança de um sorriso masculino, a pedra persuasiva que lhe acabara de enganar. Vira a cabeça para a janela, fitando a bola que se desfaz na claridade, e gradualmente se faz amarela, vermelha, marrom,...e impossível.



Marcos Carneiro


Poderia ter vindo em prosa, mas hoje ensejo versos assimétricos.

Unha, Pele e Coração


Olhos desatentos além do vidro embaçado,
e atado um nó fica, na estrada do viver.
Ao som da borracha nas águas das ruas,
seguindo o cinza da senda , tal qual molhada existe como
as coxas suas, dos meus lábios a correr.


E estas luzes verde-intocáveis, que
nas quais uma porta se abre à imensidão incoerente de negar minha aceitação.
O que mais esconde os gestos capciosos e o fazer teatro-real
da tenacidade entre unha e pele?


Contando dias em cores, nas tardes cinzentas,
que no amarelar do olhar a tristeza fomenta,
dando a seguinte indagação:
Sendo criança, homem ou mulher, qual o produto
do abstrato ofício de se dedicar à paixão?


Hormônios que dançam e furam,
o retículo cristalino da formalidade,
e na flor de espinho na meia-idade,
uma fábrica incessante o produz.


Neste ato viril de correr ante a corrente,
do que não começou, do que nem existiu,
há uma ponta da sinceridade, que em várias
línguas se traduziu, mas só em duas se entendeu.


Enquanto corto meus dedos gelados na tua quente nuca,
o maxilar no teu costado reluta,
à separar de tua alva cova alegre.
Se faz mais rápido tudo agora,
entre sorrisos, um beijo de cálcio que ignora,
um pedido algoz para que me leve.


De tantas vozes, as do silêncio mais alto falam,
e no banco de um carro minhas costas resvalam,
buscando as mãos que primeiro, com vontade, as tocou.

Meus olhos abertos, os teus fechados buscou,
e na minha saliva um pedido inédito soou:
continue a me espreitar, Linda, até eu descobrir
quem verdadeiramente, de você, eu sou.


Marcos Carneiro