Zeugma Ralé
Tantas idas na condução;
tantas voltas num caminho demente.
Mecânico - como o dia - seu coração,
se faz contentado, não contente.

Morde o pão que amassou o diabo;
sujo deste fica, tua cárie - único dente.
Carboidrato de formato amassado;
não se faz gosto, mas nutriente.

Sobe na lage como o rei local;
não se faz coroa, mas carente.
Limpa a cárie com pasta anual;
não se faz flúor, mas fluente.

Cultua o obsceno na saia da moça;
desfile gratuito na rua indigente.
Leva o sermão - esfrega com força...
Ela não é pro seus olhos, servente!

Desce do trono, rei decadente;
dedo cortado, fica calado.
Falar é perigo de ser afogado,
pois sua vida é seu próprio solvente.


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Glandiflora

Por beleza amiude, não compro-as em viveiro;
palco pro meu arrulho labor, não é esse vil jardim.
As apanho em cálices - faço o crime por inteiro -,
pra dar amor - tirando esses espinhos com faqueiro -,
à rosa branca que nasce - do feno - em mim.

Púrpura dama que habita ríspido caule;
é o cuidado que aqui jaz nesse intenso ardor.
Não se furta com insolente ato, a grandeza:
ovário evidente que abriga a natureza,
pra que enrijeça - morta - na estante de um senhor.

Por ausência - desse abstrato combústivel -
da paixão, relutava em vê-las sustentatas
em canteiros mórbidos, tantas fachadas.
E o que outrora era, fugaz, um sítio inteligível,
é agora amplidão - como lua - iluminada.

Minuano setentrional, leve-a para o chão!
Deleite-a no ardente solo que aqui pisamos;
dê a celerida, dê patas - pés humanos -,
e em dilema salutar, fracos, nós entramos:
poderá, á pé, nos vir em égide da paixão?

Importante, o lume da sacra escalada:
esticar os membros á altívola e aplainada
dama, que não espalha ao vento sua cor.

Tonitruante o gemido das ásperas espadas,
que lutam - em vão - protegendo as
poças encharcadas deste pólen - nosso amor.
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Arlindo Metade

Desde pequeno menino babão, Arlindo já se encontrara em disparidade com os demais. Pra sua fala, não tinha meio termo: tudo era pela metade. Certo dia, durante os cantos agnósticos da catequeze dominical, acompanhava a sintonia da Madre Justina:

___ Cantem, Meninos! Aveeee Mariiiiiiiiiiiaaaaaaaaa!
E Arlindo, num estampido sucinto:
___ Ave!
Desde então, todos começaram a identificar o estranho emplastro. Inclusive a Madre Justina.
___ Como é teu nome, rapazinho?
___Ar! ...
___ Ar?
___ Ar!... Se estremecia na tentativa de dizer o nome, cuja feição e esforço assemelhavam-se com uma crise de convulsão epilética. E a Madre já soltava o berro, fazendo um reveion de muriçoca.
___ Afastem-se meninos! Ele tá querendo respirar! Abana, abana!

Seu problema, se assim podemos intitular, nunca fora diagnosticado por qualquer doutor eloquente, nenhum misticismo, nenhum chá esotérico. Mas os prognósticos da boca do povo - a medicina popular - eram inevitáveis.
___ Deve tá faltando metade do cérebro, sinhá.
___Que nada, muié! É pobrema da tiróidi !
De longe alguém passando na rua, gritava pro rumo do portão:
___ Dá óleo de peroba prele tomar, que sara!

Cada um tinha o que falar sobre a introspecção do moçoilo, o qual acompanhava com olhos arregalados, como se não entendesse uma palavra que aquele mafuá de gente dizia. Não se importava.
Passado o tempo, depois de milhares de sessões de Fonoaudiologia, psicologia infantil comunicacional, acumputura da traquéia, joelhaço, e algumas pílulas pra idioitia, bruxismo, apinéia, apatia, cistite, brucelose e gagueira, Arlindo se tornara letrado em bula de remédio. Uma literatura que ele manjava com facilidade, mas ainda ostentava o problema na fala. Com o tempo e experiência, já conseguia driblar, com prudência e testes de respiração, a falha do canal comunicativo, e durante a adolescência já sabia que se tratava de uma raríssima psicopatologia da comunicação. Tão rara que só nele se observava. Depois descobriu que era um disturbio na sinapse: deveria pensar duas vezes na palavras antes de a proferir. Uma vez pra primeira metade, e outra vez pra parte suplementar.
Todo dia, na entrada do Colégio Militar, durante a ortodoxa cantoria do hino nacional - o método do duplo-pensamento ainda era ruin para o canto - , Arlindo deveria dar explicações ao Major Medeiros, do porquê de cantar daquela maneira: " Ouvi... do Ipi.... Mar... as ... cidas... de um ...herói....retum.. sol ...dade... ra... gidos.. lhou .. céu ...tria ..ne... inst... te!"
___ Não sabe cantar o hino do seu país, Arlindo!? Perguntava o Major, já sabendo do seu problema. Está com problema em algum lugar?! Se estiver, eu posso lhe ajudar com uma coronhada na fuça!
___ Na dic...
___ O quê?!
___ .. ção.
___ O quê?! Abra a boca pra falar, rapazinho! Tire essas bolas da boca e vire homem!!
E Arlindo, pressionado e coagido, tinha de ficar exercitando a velocidade de seus pensamentos da linguagem, chegando a pensar duas vezes numa única palavra, com uma rapidez fenomenal. Era impressionante seu teste de superação, apesar das palavras ficarem com um corte no meio.
___ É pro.. blema na dic..ção Se... nhor!
___ Vá se tratar, Arlindo.


Marcos Carneiro
Re-flexões.

tum tum, tum tum...
estriado cardíaco.
O tempo mutilando, rua vazia,
e a campainha - tímida mocinha -
nada fala.

Gume na carne - crime na esquina?
Fita-se a janela, e uma sombra se esconde;
Esfíncter vermelho, caindo no chão...
Escorre - alguém corre - pepsina;
e a fome aumenta.


Marcos Carneiro
Diálogo com o ponteiro.

(...) Cada tilintar do ponteiro, encaixado com o bater do seu miocárdio. Dançando sincronizado o tempo do relógio e o tempo de sua hematose, lhe proporcionando uma igualdade desconsoladora.
'O problema não é esse objeto', pensa ao olhar para o relógio de contoneira enquanto ouve o palpitar sonoro dos ponteiros em suas juntas. 'Ele também é feito em tempo. É vítima do sistema. Sempre esse tal de Sistema pra nos fazer lamuriar!' O menino acolhe o objeto, após fita-lo como uma moça quente, dando afago entre os braços cuja massa muscular ainda é perecível aos olhos. E esse gesto é o cume e quebra da inércia que lhe faltava para refinar o cérebro em grãos, num fluxo contínuo que decompõe sua existência:


- Não me cativa viver no mundo como que em briga contra o tempo. Odeio apanhar. São lutas travadas sobre gráficos; por teorias laicizantes, sob a guarda de cegas pueris deusidades; por vertigens de realidade; por diabo-a-quatro; e nós, já nos tornamos números há muito tempo: essa matemática fúnebre. Da briga contra esse perverso, eu gosto do empate; da sina ingênua de socos contra o Nada; briga de irmãos; empurrões que empapuças os queixos de raiva, descendo juntos do ringue; mãos como elos fraternos e motivados pela próxima briga; e do meu irmão mais velho - primogenito da onipotência - só espero de olhos roxos, mão arranhada; testa raspada; nariz esfolado; orgulho trancado; a indulgência sempiterna da irmandade. Inimigo do relógio é a impaciência - e oh! Chegará onde com esses passos contados? Praqueles curativos perenes de madeira, dantes não mexesse com cachorro grande, em briga contra uma longa casualidade. (...)

Marcos Carneiro

Crime Inidôneo

Teu nome ínclito, a essa boca morta escuta;
e escuto ao longe os ecos de tamanha rigidez.
Tua voz é canto etéreo de bela moça culta,
é lúdica música no choro de viuvez.

Meu olho pintado, beijado mais de dezena;
teu cabelo, uma estriga de nós eu lhe fiz.
E esta mão é como em tosse, o verniz;
é como em jardim morto nascer a falena.

Os teus dias mortos; frios como o calendário,
morrem em lazer, festa, trabalho;
que culpa tem o cotidiano?

Tua história - cravada - em livro invisível;
em essência é o teu crime impossível:
mirar a Lua, acertar o humano.

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Aliterações

Tentando, atentava - esse sujeito que me consome,
em versos falidos, tremidos, da nação Simbolista;
calar meu nome, fácil visto nas mais diversas listas,
- estranho! - estanho, escasso, escondo num pronome.

E tento, tendo tempo, por verbo trêmulo de outrora,
ganhar passagem, na linhagem de figuras de linguagem;
que metáfora morta, mata; desata nós da sintaxe torta,
na forte forca, força inteligível da intertextualidade.

Endouda pra volta; bilhete comprado.
senda torcida, remida, temida
com suas infantes razões.

Fadiga antiga, tornida, tua vida.
Prefiro, e firo, o caminho da ida;
nesse mar marcante, fluente das aliterações.



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