Uma dose de espera


Eram cinco e meia da manhã,



...e ela desperta como gato em dia de faxina: 'Bom dia monotonia'. Sim, ela mesma. O parente mais presente da família, e o que mais acolhe sem abraçar, sem dialogar. Chovia lá fora, e chovia dentro de sua consciência. O barulho da água na calha enaltecia a impaciência da branca menina, e como uma ópera misantropa que estuprava seus ouvidos, enquanto suas mãos macias tentavam intervir. O buraco na velha calha de madeira, fazia desta cair no pequeno cômodo escuro, um mal educado pingar perene, como os segundos do relógio. Um, dois, três, mil, a moça contava, mas relutava em perder-se em números, e horas voavam. Em vão, outro barulho emergia de dentro de si, uma voz que a chamava reiteradamente, 'venha, renda-se'. Ao seu lado, o criado mudo segurava as garrafas, duas quebradas e uma no chão. Ao lado destas, uma faca suja de vinho, líquido que desceu, junto à saliva nas gargantas de dois cúmplices do crime que virá a acontecer. A bola branca que encobrira todo o leito do quarto já se fantasiava de amarelo-pardo há alguns minutos, banhando, com seu espectro fantasioso de cores múltiplas, o tenro lençol que antes era dinâmico nos tempos da dupla silenciosa de macho e fêmea. Hoje, em capela murmurante, o lençol é uma estufa, onde entra a moça branca, o tempo, e as lembranças do dia, e sai um inseto após a ecdise fantástica da madrugada. Ela pensa ' a madrugada é a tela insalobra que revela aquilo que o dia escondeu', e escondeu muito, o tudo, o nada, o quase. Então vem a espera, a ovelha negra da família do tempo. A adolescente parada na inércia da austeridade do pai normalista. E a espera sim, é angustiante, naturalmente. Não fomos feitos pra esperar, pois esperar é parar encima de uma esteira, esquivando-se de ir em frente e dando passadas para retaguarda. Ela não é consumida, ela te consome. Ela te come, roe por dentro, deixando por lá a lacuna sedenta de ser preenchida por outra espera. No estampido oco de uma lembrança opaca, a moça remoe dentro de si a lembrança do passado entre sorrisos e toques, gestos e expectativas de futuro. Promessas e a pressa, que entre os goles de incerteza, se erguiam os alicerces da futura saudade. Saudade, este ciúme que se tem do passado interminável. Os olhos verdes da moça, agora fitavam o telefone. O mesmo que antes tocava como música clássica em tempos de felicidade. A chuva pára por um momento, como se esperasse algo acontecer, algum zumbido soar em algum lugar, como se esperasse uma passagem inédita para voltar á molhar o pasto. Ela olha para o teto, estirando-se por completo na cama, a mesma que na noite passada dois corpos de entrelaçavam, formando apenas um, um que entendia a si mesmo e seus anseios de moça rebelde, desbravadora de dois mundos. Imagina o teto como uma membrana celular, e ela, nadando naquele ectoplasma que lhe prendia com força, gritava 'este é meu lugar!' E gritava mais alto agora, e mais alto na segunda vez, agora apenas sussurrava, murmurava, chegou apenas a gemer os quatro vocábulos ao som dos pingos da última leva de água presa á calha: plic, plic, plic, plic,... triiiiiiim! O telefone toca. Nesse momento, a moça branca acorda de si mesma, e calmamente retira-se de dentro da célula que se imaginava estar em seu interior. O epitélio caucasiano se dobra petulantemente por toda a extensão de seu corpo. Fica atenta a penugem de um pescoço que antes era só calmaria entre beijos e unhas, unhas que tocavam furavam, a rasgavam, burlando com o próprio concentimento da alma feminina. Novamente grita o telefone com seu gemido estridente, lhe pedindo para ser violado, lhe pedindo para sentir seu plástico sintético que escondia algo do outro lado, lhe pedindo para acabar agora com a espera. Agora! E as mãos da moça iam na cabeça, nos lábios, nos seios, no lençol, na camisola entre marcas vermelhas da noite passada, da noite alcólica que lhe mostrou a certeza que sempre há de vir: 'tudo há de se acabar um dia'. E suas mãos, agora mais rápidas, e violentas, retratavam arduamente, o doce espelhar da máquina do instinto animal, e elas se batiam, não se reconheciam, na madeira, no cetim, nos dentes agora a cravar o travesseiro onde repousou as carícias do belo moço. Toca mais uma vez, o escárnio objeto ao seu lado, e junto á ela, toca a certeza de que não há mais para onde ir, 'não há', pensa alto a moça. Antes que tocasse a terceira chamada, a mão esquerda toma a decisão por um sutil golpe de misericórdia à si mesma, a mão que agora leva o telefone ao seu colo sujo de vinho tinto, a mão que acolhe o objeto como o seu mais novo amor, como o teu primeiro e ultimo amor, e esta agora escora a massa plástica engordurada no pescoço, e de longe se ouve um voz que lhe diz em alto tom: 'sou eu'. Morde o objeto, como se quizesse se alimentar de tal situação, ou da barítona voz que se emerge de tal invenção humana. A bola que se fazia branca, é todo um corpo vermelho redondo que se estende pela varanda, e atingindo as arestas de todo o quarto, sem deixar sombras e penumbras, ilumina o gume litigioso do punhal encima do creado. Os olhos miram o objeto que reluz com uma sinceridade misturada á sede de toque, que as mãos macias da moça mata ao pegá-lo com vontade, enquanto o telefone é erguido aos ouvidos. O vento, doravante, sem licenças, entra pela porta, ironicamente lhe trazendo todo o ar que esbrajadamente entra por toda a sua boca, preenchedo seu pulmão por completo, enquanto a faca massagea o busto que antes era tocado por lábios alheios, mas não alheios à sua vontade. A ponta do objeto, maliciosa que é, faz o mucocilial se abrir como o mar se abre ao rio, entrando com força, mas com sutileza. A voz que fala ao fundo perde o valor que tinha, e em imensa dor da pressão que faz a ponta afiada na angústia da moça, faz cair o objeto que à pouco fitava e amava com gosto. A outra mão, deitada no colchão macio, se estende e se junta à outra, onde no cabo de madeira se faz ir ao pescoço, correndo salutante entre as dobras suadas, fruto de sua pior estação do ano. Passa, portanto, a cantar com gemido, a música de uma alma saindo da carcaça onde habitou desde a fulcro de infância, de moça pura e destemida. O corpo treme, a os pés balançam, dobram, levantam, páram. O gemido se torna um grito agudo, sem traquéia, linguagem para o mundo ouvir e se deliciar. E o grito vira voz, que vira vibrado, que se ergue e responde á quem quer ouvir: 'eu me rendo'. Ao gosto de vento e sangue, suas mãos cravam o objeto no pescoço com vontade, e seus olhos se abrem, mas os da mente se fecham, na lembrança de um sorriso masculino, a pedra persuasiva que lhe acabara de enganar. Vira a cabeça para a janela, fitando a bola que se desfaz na claridade, e gradualmente se faz amarela, vermelha, marrom,...e impossível.



Marcos Carneiro

Um comentário:

  1. Mais um texto ultra-romântico! Em tréplica à sua resposta ao meu último cometário te pergunto se o romantismo deve ser pensado ou apenas vivido.

    O romantismo é um movimento que contribuiu tanto pra liberdade e consciência individual quanto o renascimento.

    Outro ponto é que o ultra-romantismo pode parecer realismo, mas não é. Pois o realismo aborda tragédias cotidianas, na qual desnuda as respostas sociais pro fato e nos obriga a refletir sobre estas respostas. Já o ultra-romantismo aborda tragédias idealizadas.

    Belo texto. Apesar de algumas correções necessárias, o seu texto demonstra que você possui o talento necessário pra ser um excelente escritor. Continue assim!

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