Clímax-Pílula

"O matrimônio é um fléchi , clicado este botão pela conjuntura da opressão", murmurou enquanto mechia ao mormaço o frango ensopado. Há anos não dava um passeio pelas praças da vila. Era ela envolvida pela casa como a Ecdise permanente que lhe levara ao estágio sem asas. De porra à cavalo verde, xingou para todas as arestas da cozinha naquela tarde; por não se encaixar na ótica romântica das condesas, narradas em Paul et Virginie. "Raios de livros!"
Olhou pela janela carcomida; sentiu raiva da paisagem. Passou o olho pelo portarretrato com ódio de dois instantes - era ela presa na tua impaciência desde quando quis chegar a algo -, não era uma grafia de um momento; era uma heráldica, cujo discurso subjacente nada mais era que sua prisão. Ouviu os passos dele, diziam ' estou com fome'. É o portarretrato a prisão do seu passado; é a casa a prisão do seu presente.
(...)

Marcos Carneiro
Prosopreguiça

Nem todos que tem braços trabalham:
vide a poltrona - preguiçosa -
dorme em silêncio na sala
e ainda nos convence de sua causa.



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Na estante

Uma lente macia; em zum de retina,
guardando grafias sem filme, sem clique.

Na estante um instante,
paralítico aprazia - um portarretrato :
porta para dois tempos.



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Envelhada

Caiu tempo na matéria das coisas;
e ficou - enferrujada -,
e ficou - impregnada.

Caiu tempo no tempo da foto,
e ficou - amarelada -,
e ficou - não velha - envelhada.

Teceu dobras o tempo nas mãos,
e ficou - quebradiça -,
e ficou - não reumática - esclerosada.

Pingou década na saia da menina;
cairam meses desde a última lágrima.
Chuveu eras no tronco daquela árvore;
que eu subia, descia, escrevia uma página.

E ficou
e ficou - na foto -
o dilema.

E sobrou
e sobrou - no fígado - por caridade
este poema.



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Verso daquele osreV

Na frente tem significante.
Atrás tem significado.
.etnacifingis met etnerf aN
.odacifingis met sàrtA

Na cara age o cérebro.
Na costa age coração.
.orberèc o ega arac aN
.oãçaroc ega atsoc aN

Vivemos em jaulas - - saluaj me someviV
desde o vô Cuneiforme. .emrofienuC ôv o edsed
No cabresto formal lamrof otserbac oN
de só olhar a capa. .apac a rahlo òs ed

O rompimento da semântica
O otnemipmop ad acitnâmes
com a tirana ortografia.
moc a anarit aifargotro.

Oposto de linguagem é gramática -
.ainoga mèbmat E

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Eneidinha Metonímia

Entre dois vértices apicais da sala antiga, recobrida de mármore e tacos de pau-brasil, Eneidinha saira correndo como se fugisse do Curupira; gritando por sua mãe; e em suas mãos prematuras de quatro anos, carregara dependurado um relógio Orient antigo que descobrira há minutos, propriedade de seu falecido bisavô.

__ Mãe! Mãe!
__ O quê, filha?
__ Achei um tempo.
(...)

Marcos Carneiro


Concerto no leito

Não seria, nem de longe, uma cantada;
Não, na estirpe de pobres duplos sentidos.
Pelos grilhões do faticismo, fora arrastada
à linguagem oculta de estranhos grunidos.

Onomatopéias unânimes; não existem no plano da voz.
Concebida apenas, quando no papel deitadas,
como esses corpos - luzes de brio envergonhadas -,
como esse rio - em nosso leito bebes de sua foz.

No pleito de tácitos vocativos,
são nomes, à sopros, relegados.
Encontram-se, em línguas, variados motivos
o desequilíbrio: concertos de fluentes gritados.




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(...) id
Macia pedra exótica - um soco na atmosfera;
banhada por auvo liquen, nas mãos encharcadas.
Despachadas de lacunas infindas, úlceras sombreadas,
... são elas líquidas
... adesivas
... pelo rosto coalhado, desprezadas.


Bomba carnívora - de cera; encena o desperdício.
É a arte que umidece leitos, mesas, tapetes, sublinhando a criação.
Tem, seu gradativo crescimento; erguido por pensamento,
... relaxamento,
... em vertical movimento,
... na ligeira contração.

De grandes jogos do prazer, um troféu,
erguido em anônimos e perigosos palanques;
de esportes travados sobre escuro véu
... da noite, do dia,
... na saia daquela vadia;
... dentro daquela boca, toca um céu.

É escultural, tua forma doce e aveludada,
por tantas conceituadas gnoses estudada;
um critério feminino, pra tal pueril seleção.
... Um sítio de visitas constantes,
... jazigo do ódio - e vazio - dos amantes,
válvula de escape pro nosso id p...ão.

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Zeugma Ralé
Tantas idas na condução;
tantas voltas num caminho demente.
Mecânico - como o dia - seu coração,
se faz contentado, não contente.

Morde o pão que amassou o diabo;
sujo deste fica, tua cárie - único dente.
Carboidrato de formato amassado;
não se faz gosto, mas nutriente.

Sobe na lage como o rei local;
não se faz coroa, mas carente.
Limpa a cárie com pasta anual;
não se faz flúor, mas fluente.

Cultua o obsceno na saia da moça;
desfile gratuito na rua indigente.
Leva o sermão - esfrega com força...
Ela não é pro seus olhos, servente!

Desce do trono, rei decadente;
dedo cortado, fica calado.
Falar é perigo de ser afogado,
pois sua vida é seu próprio solvente.


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Glandiflora

Por beleza amiude, não compro-as em viveiro;
palco pro meu arrulho labor, não é esse vil jardim.
As apanho em cálices - faço o crime por inteiro -,
pra dar amor - tirando esses espinhos com faqueiro -,
à rosa branca que nasce - do feno - em mim.

Púrpura dama que habita ríspido caule;
é o cuidado que aqui jaz nesse intenso ardor.
Não se furta com insolente ato, a grandeza:
ovário evidente que abriga a natureza,
pra que enrijeça - morta - na estante de um senhor.

Por ausência - desse abstrato combústivel -
da paixão, relutava em vê-las sustentatas
em canteiros mórbidos, tantas fachadas.
E o que outrora era, fugaz, um sítio inteligível,
é agora amplidão - como lua - iluminada.

Minuano setentrional, leve-a para o chão!
Deleite-a no ardente solo que aqui pisamos;
dê a celerida, dê patas - pés humanos -,
e em dilema salutar, fracos, nós entramos:
poderá, á pé, nos vir em égide da paixão?

Importante, o lume da sacra escalada:
esticar os membros á altívola e aplainada
dama, que não espalha ao vento sua cor.

Tonitruante o gemido das ásperas espadas,
que lutam - em vão - protegendo as
poças encharcadas deste pólen - nosso amor.
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Arlindo Metade

Desde pequeno menino babão, Arlindo já se encontrara em disparidade com os demais. Pra sua fala, não tinha meio termo: tudo era pela metade. Certo dia, durante os cantos agnósticos da catequeze dominical, acompanhava a sintonia da Madre Justina:

___ Cantem, Meninos! Aveeee Mariiiiiiiiiiiaaaaaaaaa!
E Arlindo, num estampido sucinto:
___ Ave!
Desde então, todos começaram a identificar o estranho emplastro. Inclusive a Madre Justina.
___ Como é teu nome, rapazinho?
___Ar! ...
___ Ar?
___ Ar!... Se estremecia na tentativa de dizer o nome, cuja feição e esforço assemelhavam-se com uma crise de convulsão epilética. E a Madre já soltava o berro, fazendo um reveion de muriçoca.
___ Afastem-se meninos! Ele tá querendo respirar! Abana, abana!

Seu problema, se assim podemos intitular, nunca fora diagnosticado por qualquer doutor eloquente, nenhum misticismo, nenhum chá esotérico. Mas os prognósticos da boca do povo - a medicina popular - eram inevitáveis.
___ Deve tá faltando metade do cérebro, sinhá.
___Que nada, muié! É pobrema da tiróidi !
De longe alguém passando na rua, gritava pro rumo do portão:
___ Dá óleo de peroba prele tomar, que sara!

Cada um tinha o que falar sobre a introspecção do moçoilo, o qual acompanhava com olhos arregalados, como se não entendesse uma palavra que aquele mafuá de gente dizia. Não se importava.
Passado o tempo, depois de milhares de sessões de Fonoaudiologia, psicologia infantil comunicacional, acumputura da traquéia, joelhaço, e algumas pílulas pra idioitia, bruxismo, apinéia, apatia, cistite, brucelose e gagueira, Arlindo se tornara letrado em bula de remédio. Uma literatura que ele manjava com facilidade, mas ainda ostentava o problema na fala. Com o tempo e experiência, já conseguia driblar, com prudência e testes de respiração, a falha do canal comunicativo, e durante a adolescência já sabia que se tratava de uma raríssima psicopatologia da comunicação. Tão rara que só nele se observava. Depois descobriu que era um disturbio na sinapse: deveria pensar duas vezes na palavras antes de a proferir. Uma vez pra primeira metade, e outra vez pra parte suplementar.
Todo dia, na entrada do Colégio Militar, durante a ortodoxa cantoria do hino nacional - o método do duplo-pensamento ainda era ruin para o canto - , Arlindo deveria dar explicações ao Major Medeiros, do porquê de cantar daquela maneira: " Ouvi... do Ipi.... Mar... as ... cidas... de um ...herói....retum.. sol ...dade... ra... gidos.. lhou .. céu ...tria ..ne... inst... te!"
___ Não sabe cantar o hino do seu país, Arlindo!? Perguntava o Major, já sabendo do seu problema. Está com problema em algum lugar?! Se estiver, eu posso lhe ajudar com uma coronhada na fuça!
___ Na dic...
___ O quê?!
___ .. ção.
___ O quê?! Abra a boca pra falar, rapazinho! Tire essas bolas da boca e vire homem!!
E Arlindo, pressionado e coagido, tinha de ficar exercitando a velocidade de seus pensamentos da linguagem, chegando a pensar duas vezes numa única palavra, com uma rapidez fenomenal. Era impressionante seu teste de superação, apesar das palavras ficarem com um corte no meio.
___ É pro.. blema na dic..ção Se... nhor!
___ Vá se tratar, Arlindo.


Marcos Carneiro
Re-flexões.

tum tum, tum tum...
estriado cardíaco.
O tempo mutilando, rua vazia,
e a campainha - tímida mocinha -
nada fala.

Gume na carne - crime na esquina?
Fita-se a janela, e uma sombra se esconde;
Esfíncter vermelho, caindo no chão...
Escorre - alguém corre - pepsina;
e a fome aumenta.


Marcos Carneiro
Diálogo com o ponteiro.

(...) Cada tilintar do ponteiro, encaixado com o bater do seu miocárdio. Dançando sincronizado o tempo do relógio e o tempo de sua hematose, lhe proporcionando uma igualdade desconsoladora.
'O problema não é esse objeto', pensa ao olhar para o relógio de contoneira enquanto ouve o palpitar sonoro dos ponteiros em suas juntas. 'Ele também é feito em tempo. É vítima do sistema. Sempre esse tal de Sistema pra nos fazer lamuriar!' O menino acolhe o objeto, após fita-lo como uma moça quente, dando afago entre os braços cuja massa muscular ainda é perecível aos olhos. E esse gesto é o cume e quebra da inércia que lhe faltava para refinar o cérebro em grãos, num fluxo contínuo que decompõe sua existência:


- Não me cativa viver no mundo como que em briga contra o tempo. Odeio apanhar. São lutas travadas sobre gráficos; por teorias laicizantes, sob a guarda de cegas pueris deusidades; por vertigens de realidade; por diabo-a-quatro; e nós, já nos tornamos números há muito tempo: essa matemática fúnebre. Da briga contra esse perverso, eu gosto do empate; da sina ingênua de socos contra o Nada; briga de irmãos; empurrões que empapuças os queixos de raiva, descendo juntos do ringue; mãos como elos fraternos e motivados pela próxima briga; e do meu irmão mais velho - primogenito da onipotência - só espero de olhos roxos, mão arranhada; testa raspada; nariz esfolado; orgulho trancado; a indulgência sempiterna da irmandade. Inimigo do relógio é a impaciência - e oh! Chegará onde com esses passos contados? Praqueles curativos perenes de madeira, dantes não mexesse com cachorro grande, em briga contra uma longa casualidade. (...)

Marcos Carneiro

Crime Inidôneo

Teu nome ínclito, a essa boca morta escuta;
e escuto ao longe os ecos de tamanha rigidez.
Tua voz é canto etéreo de bela moça culta,
é lúdica música no choro de viuvez.

Meu olho pintado, beijado mais de dezena;
teu cabelo, uma estriga de nós eu lhe fiz.
E esta mão é como em tosse, o verniz;
é como em jardim morto nascer a falena.

Os teus dias mortos; frios como o calendário,
morrem em lazer, festa, trabalho;
que culpa tem o cotidiano?

Tua história - cravada - em livro invisível;
em essência é o teu crime impossível:
mirar a Lua, acertar o humano.

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Aliterações

Tentando, atentava - esse sujeito que me consome,
em versos falidos, tremidos, da nação Simbolista;
calar meu nome, fácil visto nas mais diversas listas,
- estranho! - estanho, escasso, escondo num pronome.

E tento, tendo tempo, por verbo trêmulo de outrora,
ganhar passagem, na linhagem de figuras de linguagem;
que metáfora morta, mata; desata nós da sintaxe torta,
na forte forca, força inteligível da intertextualidade.

Endouda pra volta; bilhete comprado.
senda torcida, remida, temida
com suas infantes razões.

Fadiga antiga, tornida, tua vida.
Prefiro, e firo, o caminho da ida;
nesse mar marcante, fluente das aliterações.



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Dor
Escorrendo de trincheiras das infindas guerras;
está na língua do miserável - no teu raro flavor.
No urticante itinerário em busca de imensas glebas,
de povos que semeam - amargo sol! -
o mesmo ardor.

Em becos - vazios! - de penumbras cidades;
no olho apreensivo da moça, ao nestes, passar.
No leito de morte, no ir sem explicar;
no pueril desencontro de diferentes idades.

No olhar torpe do infiel depositário;
no consenso eclesiástico do fiel celibatário.
No desarranjo de passos, em um plano fugaz;
no jazigo de jovens mártires, que aqui, jaz.

No altivez militar, ao espelhar a indumentária;
no fim suicida, daquele que jogou-se de uma vez.
No parto enquadrado de filhos de presidiária;
na trêmula fuga do malandro ao furtar o galês.

Nas varandas, nas cortinas, nas janelas;
nos rumores de praças cheias de diálogo.
Na guarita onde repousa os dormentes sentinelas;
nos cálculos meticulosos ao consertar o malogro.

Das infindas atmosferas, onde mora a abstração.
De todas as matérias, ela veio morar em mim;
em murmúrios da sinapse, eu reduzo o universo,
e a dor dos desgraçados, sobreponho, neste verso:
dor de poeta, é sabê-la não ter fim.



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Grandeza Física Livresca

Houve um tempo em nossa juventude - não tão remota para que nossa sinapse não possa tocar com veemência -, na qual começaria a se formar aquilo que se chamaria de nós; nós no presente, no infinitivo caso fosse um verbo. A nossa ontogênese começaria por alí. Época das descobertas corporais. Da criação das primícias morais, religiosas, e de infindas coerções paternais. Época de começar a fazer e sentir-se em suas comunidades, cada qual segundo a suas escolhas ou escolhas dos tutores. Chamamos o advento de infância. Tirando uma pequena parte de acometidos de Idioitia, ébrios habituais, pródigos da vida e beberrões de esquina, loucos em vertigem e afins, vivemos nossa infância no tempo certo. Justamente no tempo em que o Tempo nos favoreceu a tal vivência com convenções de seu tipo: escorrer catarro do nariz o dia inteiro; brincar na rua, na casa, no telhado, no consultório (ops!), até voltar pra casa no fim de tarde com apenas um par do calçado, e corpo barrento até o pescoço.(Não se sabe onde arranja tanta terra). Foi também nesse intervalo cronológico que a flecha padronizada do acaso me fez viver o meu imaginário das medidas, distâncias e intensidades. Todas elas com a pitada do fantástico, inserido pelo baixo inconsciente já guardado e a quantidade de perguntas ainda sem respostas. É nesse mundo de medidas e grandezas que eu me encobria de valorar certas coisas, objetos cuja funcionalidade ainda se via obscura na epiderme verde de minha experiência. Estavam lá, ostentados quase sempre em cima da estante ou em tábuas que apregoavam-se em barras de ferro, ou sendo levados por homens de óculos passando pela rua, e até em meio às lúdicas bibliotecas que eu não entrava: estavam os protagonistas desse conto: os livros. Livro naquela época, pra mim, era um objeto de disparidades entre os seus: haviam os pobres, os ricos, os medianos, os obscuros, os intocáveis, assim como outras descrições. Não fazia o favor a ele nem de abrir a segunda página - a primeira eu abria sempre -, mas livro que se preze tinha de ter as descrições preliminares de um peru de Natal; ser fornido, robusto, limpo, cor forte, sustante, o qual se encaixava bem na mão. Livrinho manhoso, fininho, de crônicas regionalistas ia pra lixeira. Manuais de auto-ajuda eram para ajudar a fazer peso, caso o vento tentasse levantar o jornal de quem estivesse lendo. Enciclopédia não; era pomposa. O seu galicismo estava na grossura da capa, no acabamento do título que dizia: 'Enciclopédia Larousse', em letras douradas. Aquilo era enfeite de sala imperial. Pra mim que não, eu pensava; até folheava. Poderia ficar horas lendo aquele tanto de palavras descritas com contextualização ímpar, sem nenhuma relação entre si. Enquanto lia sobre 'Paris' numa folha, o olho já esticava, se apressando para chegar logo em 'Plutão'. De vez em quando cansava e folheava pra frente e desistia; era muito o que saber, e acreditava piamente, que se alguém decorasse tudo aquilo, se daria bem no programa de perguntas da televisão. Dicionário, pra minha veleidade na hora do saber, era artefato de fogueira. E no meu Index constavam outros sujeitos de se folhear, todos levavam uma aura de incômodo salutar para o creado mudo. Exemplo era o livro de receitas, coisa quase descartável na minha concepção, apesar do cheiro ser sempre bom na cozinha. Revistas eram ajudantes de tarefa de Educação Artística: recorte e cola era uma farra, uma sujeirada. Enfim, tantos outros que faziam parte da lista de encostos de seringueira: alguns códigos de leis escondidos, Constituição encima destes; algumas listas telefônicas, lista de sinopses anuais, bíblia sagrada. Opa! Esta não. Me deparei com a Bíblia também, na minha infância de menino sonhador. Essa era a complicada. Pra mim, uma velha coroca se fazia em sua imagem. Indescritível, sem conceito, como um pedaço de Marte. Pra mim era morno, mas sombreada de obscurantismo. Peça de museu. Não sem motivos. Dela, pouco se lia, e muito se ouvia falar. Era carregada na mão de homens engravatados, mulheres silenciosas de saia até o calcanhar; que andavam como se fossem lutar. Sustentava um caráter dissimulado, austero, com capa de zíper; às vezes de pano; antissocial demais pra mim, e o medo de que um dia saisse alguém lá de dentro é verossímel: na igreja dizia o pastor, que 'na bíblia está morando aquele que salva.' A fulana não tinha autor ou autora; eu ficava horas procurando e pensava até que tinha desgastado a pintura do nome. Cheguei a suspeitar que o homem que sairia lá de dentro, e que iria salvar-nos, era o autor. Até que certa vez, minha avó em sua paciência e calma peculiares, me conformou: "Larga de ser besta, mininu! A bíblia quem escrevou foi o 12 apóstolos!". Eu só balancei a cabeça, pensando alto após a explicação da senhora: pra que doze autores? O tempo então, passou. Levou-me pelas mãos, me tirando gradativamente as indagações de Realismo Fantástico; a ingenuidade descolava-me como um fardo pesado, até que outras indagações se poriam em minhas costas. Me vi aos 14 anos de idade percebendo que o peso das coisas só é válido, só é preponderante para o qual seu uso enseja. Livro então, agora, não era mais artefato físico, em sua integridade total. O livro era permeado de alguns outros personagens que se faziam interessantes, tal quais as palavras e os significados. Comecei a lê-los, incessantemente; buscava sentidos, respostas; consultava dicionários que até então eram incômodos. Pouco a pouco fui plantando um jargão que outrora não era possuido, e tudo foi correndo normalmente: eu, os livros e vazio. Vazio?! Sim, vazio. Comecei a entender que minha leitura não dava em nada. Esquecia quando lia; pulava páginas várias. Não acabava de ler completamente. Enfim, lia para passar o tempo - eu queria passar o tempo era fazendo meninisse -, esvair do fim de noite; ou pra dizer apenas a mim mesmo que lia livros. Frágil era essa situação, minha leitura não se baseava em laços fortes, tendo consigo apenas o pretexto do consumo temporal. Logo, logo estaria de volta ao entretenimento adolescente moderno: diversão eletrônica, meninas da minha idade; jogos de consquista e uso de entorpecentes legais. Os livros, mais uma vez, se encaixaram na prateleira.
A fada madrinha foi minha irmã, naquela época vestibulanda das ciências humanas. Não sei se gostava de ler para passar tempo ou para adquirir conhecimento. Mas foi ela. Foi ela que certo dia, em uma conversa diária comigo em seu quarto, entre bagunça cômoda da prateleira, me entregou um grande livro de capa azul. Laterais amarelas, meio baunilha. Pegou aquele livro e me entregou. Se intitulava "O Mundo de Sofia", de Josten Gaarder. Eu, virei a cara na hora. Ler me dava repulsa. Mas após olhar meticulosamente a capa, me fiz diplomaticamente abrir as primeiras folhas. Continha uma grande história fictícia, com personagens céleres, diálogos frenéticos. Havia nele um mistério em sua história, presságios mirabolantes, misturados ás teorias filosóficas múltiplas, narradas em mais ou menos 400 páginas. Em duas semanas e alguns dias, eu chegaria ler a última página com o olhar apático. Queria começar a ler novamente, pois alí, naquele pedaço de papel cultural proveniente de lapidações de uma árvore, e cujas dimensões não tive nem o sacrilégio de pensar, estava o estopim de um grande e ascíduo leitor.

Marcos Carneiro
Obs: Este texto não é publicidade para J. Gaarder. Só parece.





Vinte e oito

Quão dúbio é, em traços púberes, o teu rosto!
E como bipolariza, não por ti, nem por seu gosto.
E sim, por ser fêmea da tua espécie: a tua estaca,
condição que te move desde a tua menarca.

Vinte e oito dias, trinta pra arredondar
a incessante lesão no teu álamo,
vindo como Lua, em fases, te ressecar,
desde a mensagem do hipotálamo.

Dogma fisiológico que te imprime anarquismo.
Mitoses e meioses te deixam em insônia
quando resolve teu metabolismo,
já em detritos - grito mudo -, dar vida à Ovogônia.

E faz-se ciclo, o teu calendário hormonal,
esse pragmatismo que te deixa na lona.
E como deixas à deriva tua nal
pelo Lh, estrogênio e progesterona.

Pra quê a discussão e tocar na palavra cortante,
se tudo depende do teu folículo estimulante?
Há de ser tocado, por nós, em tão pueril mérito
sendo dependendente apenas do teu endométrio?

Entender não posso, como o volante é pouco teu,
e muito menos eu, a bula, posso lhe atirar.
Como podemos, tal empreitada, você e eu,
se nem teu corpo e temperamento tu podes controlar?

Acalma esse martírio, mas nem tanto,
dando ao corpo lúteo a sua absolvição,
dar sequência a prole - o teu efêmero pranto:
a célula diplóide a caminho da nidação.

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"Dotô, tô cum pobrema"
A ordem do destempero

Ela era preta, preta, preta e pomposa. Batom roxo-borrado no canto da boca, e suada. Veio em minha direção, e se adentrando à porta do escritório, lembrou-me muito as babás de fim do Império. -- Muito cômodo, e salva a nossa pele, começar uma crônica com a inserção de um juízo de valor a um sujeito previamente excêntrico ou uma situação previamente não calculada. E a garotada verve de nossos dias, a cada vez mais com pressa de mostrar-se letrada, estrangula esse mecanismo por um motivo: destempero. O excesso é a mancha escura nesse lençol; então o menino de 11 anos começa a escrever a   ortodoxa redação intitulada Minhas férias na fazenda da vovó: " Tinha um cocô verde, grande, no meio da sala de jantar..", e arg! já gastou a espoleta no primeiro tiro. Isto chama-se Virada do Pote, designo assim. Virou-se o pote de pimenta e a tampa caiu na primeira sacudida. O clímax, inserido pelo cocô verde, fedeu antes da hora. -- Sentou-se na cadeira, levantou pra tirar o maço de picados do bolso, sentou-se novamente. Olhar assombroso o dela, ao me dizer, "dotô, tô com um pobrema." Eu pensei baixinho; em despojo; ela está com dois, na verdade. E com musicalidade. Eu e ela, alí, um em frente ao outro, nos encontramos nesta vida, pois na morte jamais iria acontecer tal escrúpulo. -- Escrúpulo. Outro modo sempiterno de se acabar com um texto de modo desesperador, é a força descontrolada ao descrever tais institutos mundanos, pecando na exatidão do objeto a que se refere, fazendo assim, um julgo que não se adapta à estética do sujeito menciondo, por inadequação. E fazemos dioturnamente isto por falta de afinidade com a palavra, ou apenas pretensão de usar determinada expressão. Então o rapazinho de 11 anos, que escreve a redação Minhas férias na fazenda da vovó, insere no texto a nova palavra que aprendeu em uma conversa dos tios: "Lasciva". E sem pudor a usa: "Aquela vaca comia o pasto com Lascividade." O nome disso é floreamento. Isto não é colocar o carro nas frente dos bois, não é sobre o tempo que estamos falando; isto é colocar os bois encima do carro e sair empurrando! É muita luxúria pra uma vaca só, a qual apenas come capim. Mas a vontade de usar a palavra vem a tona na cabeça do garoto. Ele quer mostrar pro mundo - ou só para a nova professora - que tem conhecimento de tal jargão galês. Continuemos. -- Não fazíamos mau algum, um ao outro. Concomitantemente, parados, observando cada qual com seus carregues existenciais. Reticente que sou, teimosa que é ela, chegou em findar numa solução: " - Então é benefício assistencial, né dotô?". Como era interessante ver a pobreza em pessoa, em estrutura, em roupa, em lamúria e odor. Tirou os documentos do pequeno alforge que laçava a cintura, tipo de caçador, bravura em pessoa; olho atento, mão grossa a puchar a identidade amassada; e a torneira dos valores que não parava de pingar em mim, dizendo: pra indigente desse mundo frio, o pelego é o maior documento. -- O jovem alfabetizado, ainda anônimo no mundo das palavras, gosta de experimentar coisas novas. Gosta de tentar inovar, ancorado nos ombros de grande nomes. O bambino apaixonado lê Drummond esporadicamente, e esquece as paixões, ao se apaixonar por Drummond. Lá vai o mocinho escrever poema - e há um caminho até ser poesia. Como está estudando a estética do poema - o garoto apaixonou de verdade -, solta-se a caminho do saber literário. Em poucos dias, já define Conceptismo, Cultismo, Encadeação, além de todas as escolas. Em nota, fica craque em separar sílabas poéticas: " A/mor é/ fo/ go/ que ar/ de/ sem/ se/ ver", e aos poucos está inventando grupo silábico, como o exemplo em anexo. Daqui a pouco aplicará gongorismo na prosa - pra raiva de Luíz de Gongora -, vomitando neologismos, metáforas de requinte, trocadilhos epifânicos, e usando na redação jornalística argumentativa, os seus saberes, ao falar do nosso presidente: " Lula, ao defenestrar toda prole labutária, e postergar dilentantemente, o ócio silente de todo mandantário para próxima era administrativa, traz gozo salutar ao cume do freneticismo político. Assim não dá!" Exato, assim não dá pra professora,( mal remunerada, acometida do mal do século - estresse -, virgem de olho e com todo peso social que o desmericemento da educação lhe inferiu) entender aquilo que o aprendiz de Quintino Bocaiuva tem a dizer. A mocinha lê Clarice Lispector. No primeiro parágrafo de Hora da Estrela, já ama Clarisse; não obstante, no parágrafo seguinte, quer ser a Clarice: "Eu amo Clarice! - diz ela pra si. E já ensaia seu primeiros parágrafos intimistas; quer ser intimista; "quero falar do que vem de dentro"; quer levantar e astear a bandeira do intimismo; Agora quer ser feminista, apesar de não saber de onde nasceu e a finalidade para tal. E pronto, está feito outra desgraça na cabeça do pré-adolescente moderno, ao trazer para sua consciência, na âmago do saber, o seguinte ideal para si: 'Intimismo é falar de si'. Portanto, já tira as primeiras obras em parágrafos eloquentes, de título bastante famoso em vários cantos de cadernos do 1º ano ginasial, por exemplo: ' não caibo no mundo. Sou só, assim como o mundo é.' Alguns ainda mais petulantes , sem compromisso exalam na porta do guarda-roupa: ' vou casar com o mundo, de véu grinalda e coração sangrado .' E ainda sabe também fazer o mecanicismo da escrita dos fluxos de consciência: "Andava pelo passeio; não, agora corria; corria mas queria parar, pra ver, pra morrer, pra chorar; e não aguentava mais o cansaço das minhas pernas; tão paradas antigamente na minha preguiça exaustiva"... e ainda coloca conceptismo avançado .. " e correndo, plof plof plof plof plof, tcha bum!; caio na água do meu prazer." O pragmatismo é o sobrenome feio do adolescente escritor, morando na esfera intimista que ele inventou. -- Ela levanta da cadeira, após colocar os papéis sujos na bolsinha, mas antes, pede água: "me arranje um copo dágua, dotô." O copo se levanta e deixa dois pingos testarem a gravidade; dois espelhos; caindo juntos com o suor daquele indivíduo. Gluc, Gluc, Gluc, e pela porta sai. Fico eu, meu quadros , meus livros, e minha gramática. Sem solução para o quadro dela, que era puro intimismo.

Marcos Carneiro




























































Dezessete
Dezessete primaveras cálidas,
um singular severo verão de calor:
o que separou esta alma pendente,
com anseios da mão célere, experiente,
do meu mais cérceo morno torpor.

Menina mimada, como o mundo, à cidade andando;
Seguindo o seu norte, no Austral caminhou.
No oeste dormiu noitadas sob a floração,
no Leste, viu que dos bairros, o mais feliz,
é onde se enterra como arbusto a solidão.

Vestindo de Vênus, a sua indumentária,
puxando as rédeas da luz do velho Apolo,
abraçou, em mordaz movimento, Afrodite,
deitando como folha no grego solo,
caindo como criança no meu erradio colo.

Arguiu em palcos, almas diversas,
protagonista dessa imensa e verduga peça,
e ensaio não permitiu, onerosa que é esta.
Dançou dança comigo, fez em palco, tango, seresta
das praças, das ruas, em seu leito macio fez festa.


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Em duas cores

Sintilância da pele clara,
a contrastar com o negro do mundo.
Voz que emana do mormaço do fundo,
a soltar luz no ruído que dele, exala.

Da garganta, lânguido corredor,
se faz hóspede a palavra lodosa,
como o alimento que serve a dor,
ao alimentar a lâmina formosa.

E vênus pela janela, cinema em duas cores,
das quais uma lembra os amores,
na gaveta escura da tenra imensidão.

Lembranças do deitar na divina prancha,
onde os delgados braços desmancha,
márcara dos seios, ao tentar ver coração.
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Poesia itinerante

Cada dia uma missão,
cada passo, passa o solado,
a brigar como soldado,
em guerra contra o chão.

E cada passo como fóssil
para o leitor do futuro,
como um cancro duro,
não ama, mas se faz dócil.

Mas se tem como eficaz,
o papel duplo no alvo nariz,
que ao assuar a poesia, o faz
respirar poesia de aprendiz.

Cada esquina uma palavra,
como acne - célula morta,
que em folha branca se exorta
com recorte,
en/ca/dea/mento,
di vi são.

Cada parágrafo uma paralela,
cada placa - uma vírgula -, nela.
Idas e voltas na estrada,
pra pegar a sintaxe, ops!furada.
Agora no acostamento.


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Ela é vistosa, fofa, e intocável. Lúdica luz na escuridão imensurável.
Aquela Maria Mole de pedregulhos, que em ciclos menstruais faz a Terra, creada indemitível, abrir e fechar as cortinas da sala de visita.
Nós somos famintos pelo sem-gosto. Pela imagem confortável de morder o
que é fofo vistoso, intocável. Há mais elos entre dentes e o aveludado das coisas
do que o censo pode discernir. Intocável que é, está na frente do cardápio, prato dos dias,
mas não de mesa. Prato abstrato pra se comer com os olhos, temperar com poesia e lambuzar no outro.
(...)
Eu e você, como garfos afiados nas mãos, espreitando aquele sorvete inoxidável, e talheres que não hão de se sujar.




Marcos Carneiro
Fiz marulhos em teus ouvidos,
escalei a montanha de sua costa.
Andei descalço no teu sinismo,
e pegadas deixei no abismo,
da alva cova que no sol, tosta.

Destingui homem de mulher,
faço denovo se quizer.
Apedrejei o romantismo,
fiz frente ao realismo, de machado,
de martelo,
de bigorna.

Fiz planos de onde estou,
conquistar o mundo que ainda resta,
dentro de sua testa,
acima de seu pescoço,
aquela festa.
Teci, tocindo, tecido de pano alheio
para tu vestir, e ter
aquilo que calor desperta, mas
o fria ainda não amedronta.

Fiz pão da sua coxa, fiz colcha desses retalhos.
Trilhei caminho da roça,
de praça fizemos lar,
lá e cá.
Marcos Carneiro

Não confunda culto com erudito.
Tem gente que nada mais faz do que apenas sistematizar matéria teórica, dando nomes aos bois pela primeira vez.
Não é certo que esse homem tenha a plenitude de conhecimento daquilo que acontece no
mundo ao seu redor, pois até um louco - na acepção popular da palavra - pode ser erudito.
...

Quase sempre, é preciso dar uma surra no ego. Criança mimada que é.
Freud dispôs sobre tal instituição mental, mas não disse que carregaremos a criança no ombro o tempo todo. E se quer saber da realidade, ela nem quer saber do ego que a carregamos. Somos sempre obrigados a flexibilizá-lo ou mudá-lo completamente para atender às convenções do mundo. O homem, sendo animal político, há de ter estas obrigações quanto ao seu ego.
O sistema se impôs até em nosso ego, e principalmente nele. É duro e rígido. Mas é real.
Rousseau, com sua tal Vontade Geral, saberia o que dizer.
...

Mas é claro que há um embate de realidades. A realidade do abraço é bem mais complacente que a do mundo. E dia 13 está chegando.



Marcos Carneiro












Este blog

mudou muito.




Não serve para capas de livros nem de cds, gratuito que é. Não está explicado em frases feitas, muito menos se comporta em manuais. Não é debate idealista para o frustrâneo feminismo, tampouco é bandeira para homens garantirem-se. Talvez é socialismo utópico, dentro do anarquismo rudimentar. É talvez unido pelos gesto, ou gerido por incesto, segmentado pelo ardor da saliva em cada órgão, que juntos, completam a orquestra do gemido fúnebre de células que morrem para nascer em outros tecidos.


Marcos Carneiro


Arestas

As unhas humanas ante grades.

O punho cravado no coração

que palpita no âmago das saudades

do ato de virar as arestas das cidades,

para que encontre você.




Os olhos a pescar passado,

sua imagem a deitar no meu olhado.

E rolar, rolar, e fecha-lo

para o sonho vívido de lhe ver talhado

meus dentes secos no teu lábio.




O grito mudo a chamar-te

e você, fêmea tirana, vindo a tomar-me

os liquidos, o tempo, o pensamento.

Minha vida a contemplar a tua,

que em mim, desfila nua,

enquanto te cubro ao relento.



Marcos Carneiro


Me recuso a acreditar no que não existe.
E correr nessas idas e voltas
como em uma esteira ergométrica.
Se acredito, é porque fio de verdade se tem por aí.
E recusando, quantos caminhos deixei de seguir?
Ando como se fosse em marcapasso. Talvez enfalço é o andado, mas sei onde eu erro, onde o tropeço é dado. Sei onde quiz errar apenas por capricho.
Sei onde me arrependo, e quando não tem mais volta.
Se pareço um ramo de galhos soltos, pode ter certeza
que hão de ser mudas para uma grande floresta.
As vezes um erro no tempo certo é melhor que o acerto intempestivo.
Por que um dos elementos que primeiro o tempo há de
legitimar, são os elementos da oportunidade.
Não vejo comodidade no casamento com o mundo, e
o cerne de toda essa nossa vivência um dia se rebela, deixa
derramar o âmbar da alma nas ruas.
E aceita o álcool entrar pelos nosso poros, aceita
o ato libidinoso, aceita a imoralidade,
e fazer da saliva colóidal, o único documento de indigentes,
como nós.
Há de se ter coesão em tudo isto.
Marcos Carneiro



Olha só o juvenil divagando no relento mundo formal:

O Olhar

Ás vezes, tiramos férias do tempo.
Então a gente se vê como uma estátua a contemplar o passar tautológico das tardes.
No meio do ofício, tiramos férias do mundo. E fechamos as cortinas à briga das ciências, à aspereza dogmática do professor sabido. Conceitos, concertos, definições, definhações.
Olhos no quadro negro, tudo negro é, para quem há mil anos está do presente.
Passamos então a puxar o fio lineável que se esconde nas situações e que nos leva à luz da reflexão onerosa de tentar descobrir até o que não se quer, o que não se pode. O tempo concebeu ao nosso corpo, mecanismo eficazes à materializar as infidáveis preposições que o cérebro capta. Estava eu alí, no cancro rígido da cadeira, sem ser marionete dos teóricos, indagando sobre o olhar.

(...)
Eventualmente, não muito longe da realidade, tiramos férias dos olhos. Então passamos a discordar do que se vê. Não por discordar pra não querer. É discordar para que o cérebro não coloque na gaveta mais um emaranhado de pulsos elétricos. É mais fácil sentar no marasmo, do que andar na esteira da exortação.
O olhar é mecânico, é elétrico, é exato. Não é humano. Ele sabe o que faz, de forma imediata.
Olhar é contrato. E assina-se com as pálpebras, as vezes nem levantadas.
E a visão é uma senhora estudada, letrada e carismática. Política de alto calibre.
E deve ser objetivo, o olhar não se engana: olha-se tudo, ou a necessidade olha por eles.
(...)


Naquele dia, olhei de uma vez. E o olhar, mais uma vez não se enganou. Apenas tirou-se da frente para pensar no próximo olhado. E olhando pensado demais, deu no que deu: este tanto de verbetes prescindíveis à nossa prática se alimentar com os olhos o que não se alimenta com a visão.
Quanto mais você me olha, mais desejo assistir a teu olhar. É tua faca de dois verdes gumes.

Marcos Carneiro